Significado da existência de Joaquim Pinto de Oliveira Tebas, o negro arquiteto do século 18
- Abílio Ferreira
- Feb 22, 2018
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Ao imprimir a marca de seu talento em pedra de cantaria nos locais mais visíveis e estratégicos da São Paulo colonial, num momento em que Igreja e Estado se confundiam, e em que a cidade se consolidava como ponto de partida para o povoamento do interior da Capitania, Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), apelidado de Tebas pelo povo do século 18, tomou de assalto o imaginário popular e passou a habitar a memória social paulista, ainda que as negociações entre lembrança e esquecimento, próprias das relações de poder que caracterizam as representações do passado, tenham dificultado o reconhecimento público da sua existência ao longo dos séculos seguintes.
O reconhecimento, escreveu em 2007 a professora Elza Peralta, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, é pressuposto essencial para que relacionemos nossas recordações individuais a contextos culturais mais vastos.[1] Esta é certamente a razão porque o reconhecimento é o primeiro dos três eixos da Década Internacional dos Afrodescendentes (janeiro de 2015 a dezembro de 2024), proclamada pela Organização das Nações Unidas para promover o “reconhecimento”, a “justiça” e o “desenvolvimento” desses povos. Afinal, a proclamação da ONU é reflexo de um cenário de histórica e sistemática exclusão, e até mesmo de eliminação, física e simbólica, da população negra em todo o mundo. Numa época de produtos, prazeres e vidas descartáveis, o reconhecimento é o maior legado que Tebas nos proporciona.
Em entrevista concedida ao jornalista Wagner Ribeiro para a revista Leituras da História, em 2012, Benedito Lima de Toledo, professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, destacou que Joaquim Pinto de Oliveira soube captar a religiosidade da época e expressá-la de maneira muito pessoal. “Essa expressão da religiosidade é que o transformou em arquiteto e as suas obras em arte”, disse Toledo, na ocasião.[2]

(LEITURAS DA HISTÓRIA) – Ilustração/Montagem de Fabiana Neves:
Na capa da edição 50 da revista Leituras da História, o personagem é tratado como “engenheiro”. Já a reportagem de seis páginas no interior da publicação é intitulada “Tebas, o escravo arquiteto do século 18”. Nos dois casos, chama a atenção o termo “escravo”, como se esta não tivesse sido uma contingência, uma condição de que Joaquim se livrou ainda na metade da vida. A montagem, no entanto, não deixa de reconhecer o seu protagonismo na ornamentação da fachada do antigo Mosteiro de São Bento, um dos vértices do triângulo histórico de São Paulo
Pode-se dizer que Tebas foi decisivo para a constituição daquilo que Luís Saia, outro arquiteto de peso, chamou certa vez de período de “renovação estilística, ocorrido especialmente nas igrejas na segunda metade do século XVIII.”[3] Nosso personagem atuou nos vértices do triângulo histórico de São Paulo, representados pelos conventos das três ordens religiosas – carmelitas, beneditinos e franciscanos – presentes na cidade desde o início da ocupação portuguesa do Planalto de Piratininga.
Além de ornamentar as fachadas das igrejas do Mosteiro de São Bento (1766), da Ordem 3ª do Carmo (1777) e da Ordem 3ª do Seráfico São Francisco (1783), foi responsável também pela construção da torre da antiga Igreja Matriz da Sé (1750), bem como pela reforma dessa igreja 28 anos mais tarde, ocasião em que conquistou a alforria, aos 57 anos de idade, 110 anos antes da abolição. Entretanto, a já citada reportagem de Leituras da História informa, na página 31, que mesmo escravizado Tebas já recebia pelo seu trabalho 640 réis por dia, “uma vez e meia o salário de um construtor branco”.

(CARMO) – Foto da internet:
A Igreja da Ordem 3ª do Carmo, cujos três arcos e demais elementos de pedra da fachada foram executados por Tebas, permanece na paisagem do centro da cidade de São Paulo, ao lado do prédio da Secretaria da Fazenda, na Avenida Rangel Pestana

(SÃO FRANCISCO) – Foto de Augusto Militão de Azevedo, 1860:
A fachada da Igreja da Ordem 3ª do Seráfico São Francisco, a primeira da direita para a esquerda, na foto, ainda está exatamente como Tebas a executou, em 1783. Quatro décadas e meia mais tarde o convento franciscano, à esquerda, passaria a abrigar a atual Faculdade de Direito da USP

(IGREJA MATRIZ DA SÉ) – Foto de Augusto Militão de Azevedo, 1860:
Tebas fez duas intervenções na velha Igreja Matriz da Sé, à direita: construiu a torre, em 1750, e executou a reforma do prédio, entre 1777 e 1778
Joaquim Pinto de Oliveira também está presente no coração da primeira fase da economia canavieira paulista (1765-1851), que formou o chamado “quadrilátero do açúcar”, delimitado pelas atuais cidades de Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí. Em 2016, o historiador Carlos Gutierrez Cerqueira, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), encontrou, no Livro de Receita e Despesa do convento franciscano de São Luiz, na Vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu, então epicentro dessa economia, dois lançamentos de janeiro de 1795 – um de 38.400 réis e outro no valor de 8.800 réis – como pagamento a Tebas pela confecção de um enorme cruzeiro de pedra[4], único elemento sobrevivente ao incêndio que em 1907 destruiu completamente o conjunto arquitetônico (convento e igreja) construído pelos franciscanos entre os séculos 17 e 18.

(CRUZEIRO) – Foto de Elvis Justino, 2017:
Joaquim Pinto de Oliveira recebeu 47.200 réis para entalhar o cruzeiro ainda hoje presente no centro da cidade de Itu

(CHAFARIZ):
O desenho do Chafariz da Misericórdia, executado pelo artista plástico José Wasth Rodrigues (1891-1957), a partir de foto de Augusto Militão de Azevedo, revela a função social dos chafarizes públicos da cidade de São Paulo: ponto de trabalho e encontro do povo, especialmente da população negra
A essa dimensão religiosa de sua atuação, porém, deve-se acrescentar o seu protagonismo numa das mais marcantes obras do período, o emblemático Chafariz da Misericórdia, construído por ele em 1792, todo talhado em pedra de cantaria e com quatro torneiras – um luxo para a época! O “Chafariz do Tebas”, como o equipamento ficou popularmente conhecido, foi o primeiro sistema público de abastecimento de água da cidade. Ficava em frente à Igreja da Misericórdia, no cruzamento das atuais ruas Quintino Bocaiúva, Direita e Álvares Penteado, a cerca de 200 metros do marco zero da maior metrópole da América Latina e das rodovias que cortam o estado.
Em que pese a devastação da memória paulistana promovida a partir do início do século 20, Tebas representa o protagonismo negro na construção da cidade, do estado e do país, seja por meio de suas obras ainda presentes na paisagem urbana – caso das igrejas do Carmo e de São Francisco, bem como do cruzeiro localizado no centro da cidade de Itu –, seja na história da arquitetura e do urbanismo de São Paulo.
Abílio Ferreira é escritor e jornalista.
Notas:
[1] Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha crítica, in Arquivos da Memória, Nº 02, 2007, p. 19.
[2] Leituras da História – Edição 50 – Abril/2012, p. 32.
[3] Resgate: história e arte, de Carlos Gutierrez Cerqueira, 2016, p. 76.
[4] Idem, p. 103.
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